SAUDADES DE MEMÓRIAS NÃO VIVIDAS
Bem sei que este é mais uma das minhas opiniões que vem tardiamente, e acaba por ser tanto poético, como fatídico. O Bossera o verdadeiro artista que queria ter visto no Rock In Rio, mas que, infelizmente, não se proporcionou, e mais angustiado fiquei quando soube que foi um concerto memorável. Quem o viu fez parte da história. E a história não concede segundas oportunidades.
No fundo, Bruce Springsteen foi mais um dos legados que o meu pai deixou. Desde pequeno recordo-me de ouvir em alta rotação The Streets of Philadelphia, longe de imaginar o significado e o poder lírico daquelas palavras.
Springsteen nunca foi um homem de deixar palavras ao acaso, de se alhear do que o rodeia, de fazer música fácil, muito embora o seu sucesso seja estrondoso.
Ouvi-lo recordo-me da sátira, da mensagem subliminar, mas de uma maneira bem mais cuidada, bem mais poética, num estilo tão caacterístico a si próprio, e seguido pela sua companheira d'armas Patti Smith, que veio a ser seguida pelos Rage Against The Machine, se bem que com uma abordagem bem diferente.
Mas o espírito é o mesmo. Um olhar patriótico, mas crítico e atento, de um cidadão maduro, na melhor tradição de intervenção de Dylan e Baez, até Woody Guthrie.
Wrecking Ball não foge a este registo. Símbolo da destruição, da machination capitaliste por excelência, e começa com o tom irónico «We take care of our own» em que Springsteen revisita o fantasma recente do Katrina e o facto de o Estado não ter estado lá quando as pessoas mais dele precisavam, ironizando «Wherever this flag's flown/We take care of our own».
Mas o ataque crítico de Springsteen mantém-se e desfere-se sobretudo ao culminar da depressão sobre todos os aspectos. Os agiotas, os abutres que procruam dinheiro fácil bem latente em «Easy Money» e «Jack of All Trades». Esta última assume um radicalismo maior, quase poderíamos dizer ao estilo do Zé Povinho vingativo, em que Springsteen apela à 2ª Emenda e ao recurso às armas: «If I had me a gun, I'd find the bastards and shoot 'em on sight,». A qual tem um solo de guitarra épico e evocativo, no auge da música.
Mas o que acho mais interessante é a maneira com Springsteen busca as várias influências da cultura musical americana, articulando-as, desde as descendências do folclore irlandês em «Death to My Hometown» e «American Land», brilhantemente bem orquestrado, até ao Gospel e Soul de Shackled and Drawn. Já para falar do country de «Wrecking Ball». E no topo do bolo, de músicas genialmente construídas, vêm as letras sublimes. Dá para invejar um poeta destes dos tempos modernos. Quem ouve Wrecking Ball consegue sumarizar o espírito americanao na sua virtude, na sua tristeza, na sua profundidade e seu pesar. A traição do sonho americano em «Land of Hopes and Dreams», e o flagelo das crises do capitalismo na magnânime «Death to My Hometown».
Ouvir Springsteen e a sua brutal E-Street Band é como passear nos campos da glória, atravessando as adversidades, os temores e os medos, e terminar como heróis e Wrecking Ball não é excepção. Uma lenda viva sem dúvida.
«Hard Times Come and Hard Times Go», a crise está aqui, mas havemos de a ultrapassar, olhando-a nos olhos, «givin' our best shot, puttin' out our wrecking ball». Como um profeta, o Boss encanta sempre com uma postura imaculável gerações e gerações de ouvintes.
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